O dia 13 de junho 2019 foi marcado por uma grande conquista para a comunidade LGBTQI+ no Brasil. Após uma série de discussões travadas ao longo de 18 anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na última semana, por 8 votos a 3, que os crimes contra as lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis poderão, a partir de agora, ser enquadrados como ‘racismo’ – crime hediondo, inafiançável e imprescritível. A pena prevista varia entre um e cinco anos de prisão e a tipificação valerá até que uma lei específica para crimes de homotransfobia seja aprovada pelo Congresso Nacional.
Foram julgadas uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 26), enviada à Corte em 2013 pelo PPS (Partido Popular Socialista); e um Mandado de Injunção (MI 4733), protocolado em 2012 pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT). Considerando que os deputados federais e senadores foram omissos em relação ao assunto, o STF interpretou que a Lei Nº 7.716/89, que dispõe sobre a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional, deve também ser aplicada a quem pratica agressões – físicas, morais e verbais – contra o público LGBTQI+. Para a secretária de Estado da Inclusão Social, Lêda Lúcia Couto, todo preconceito é um ato de violência e deve ser combatido. “Assim, considerar o ato preconceituoso praticado contra homo e transexuais como crime é um avanço civilizatório na sociedade brasileira”, pontuou.
A referência técnica de Políticas para a População LGBTQI+ da secretaria de Estado da Inclusão, Assistência Social e do Trabalho (Seit), Adriana Lohanna, considera que o avanço representa acolhimento e segurança legal à comunidade, e resgata a esperança pela liberdade de ser de cada grupo componente da sigla. “Criminalizar a homotransfobia é dar apoio, não somente institucional, mas também humano, a todas essas pessoas que, diariamente, são violentadas – física, moral e psicologicamente – em uma sociedade cada vez mais misógina, racista e lgbtfóbica. Agora, com este amparo legal, temos a esperança de redução nos casos de homotransfobia. E, a partir disso, entendemos que as pessoas que insistirem nas agressões, terão a punição devida”, defende.
Ainda segundo Lohanna, buscando a inclusão social da comunidade LGBTQI+ e o respeito à diversidade sexual e identidade de gênero, a Seit está em fase de implantação do Conselho Estadual de Promoção da Cidadania e Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CONLGBT). “O grupo irá planejar e executar ações transversais e parcerias entre governo do Estado e sociedade civil, com o objetivo de construir coletivamente políticas públicas para combater toda forma de discriminação e desigualdade envolvendo a população LGBTQI+”, conta.
O estudante João Dória é um dos milhares de jovens que já foram vítimas de intolerância. Há cerca de dois anos, quando estava com amigos, ele – que é gay – foi agredido por um grupo de rapazes e teve o nariz fraturado. Para ele, a decisão do STF combate mazelas sociais, e contribui com o direito à proteção e defesa do cidadão. “Esta é uma questão cultural, que vai além do âmbito familiar. Enquanto o processo de garantia de direitos fundamentais está desacelerando no Brasil, temos este avanço incrível, contribuindo com a nossa segurança e a primazia do direito fundamental do ser humano”, pontua.
Mestranda em Arqueologia, Bruna Luiza Ferreira é lésbica e acredita que a criminalização vai inibir a discriminação contra a comunidade LGBTQI+, sendo uma ferramenta essencial para a manutenção da cidadania e do direito irrestrito à liberdade. “Ela vai garantir que possamos viver sem medo. Espero que, além da punição severa para quem agir de forma discriminatória, a criminalização também funcione como medida educativa para a real integração social desses grupos. Que leve ao fim da banalização da violência e dessa cultura de que o ‘certo’ é o padrão imposto pela sociedade, em que tudo diferente é tido como errado, devendo ser corrigido. As pessoas são diferentes entre si e vivem conforme o seu entendimento de mundo, e ninguém tem o direito de controlar o outro. Para mim, essa é a base de uma sociedade mais justa”, complementa.
Violência e denúncia
A criminalização da homotransfobia chega num momento em que o país lida com uma série de casos de violência contra a comunidade LGBTQI+. Segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), entidade que levanta informações sobre assassinatos desta população no Brasil há 40 anos, só no ano passado, 320 pessoas LGTBQI+ morreram de forma violenta no Brasil. Destas, 124 foram vitimadas por armas de fogo (29,5%); 99 por armas brancas perfuro-cortantes (23,6%); e 97 por agressões físicas (23,1%) – espancamento, asfixia, pauladas, apedrejamento, carbonização.
O GGB também relatou que, de 2000 a 2018, 4.470 pessoas LGBTQI+ foram mortas no país. A maioria dos registros envolve pessoas entre 18 e 25 anos, correspondendo a 29% das vítimas. Ainda de acordo com o Anuário do Grupo Gay da Bahia, seis mortes ligadas à homotransfobia foram registradas em Sergipe em 2018, sendo cinco envolvendo mulheres transexuais.
O Departamento de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGV) presta serviço à população com quatro delegacias especializadas no atendimento de mulheres, crianças e adolescentes, idosos e deficientes, LGBTQI+, pessoas negras e vítimas de intolerância religiosa. A Delegacia de Atendimento aos Crimes Homofóbicos, Raciais e de Intolerância Religiosa (Dachri), que pertence ao Departamento, atende às demandas relacionadas aos crimes contra a população LGBTQI+. A unidade tem atendimento 24h e está localizada à Rua Itabaiana, nº 258, bairro São José, em Aracaju. Denúncias também podem ser feitas gratuitamente através dos números 181 ou 190.